Poderia ser só mais uma subida daquele segundo dia de pedal pelas montanhas nos arredores de Blumenau (SC). No entanto eu ultrapassava o meu nível normal de concentração. Pela inclinação aguda, que não permitia que eu parasse de pedalar nem por um instante e deixava minha respiração ofegante, entrei quase em transe – sutil, mas ao mesmo tempo contínuo.
Talvez fosse uma embriaguez por esforço, o que, convenhamos, é um sentimento bem apropriado para um lugar conhecido como Vale da Cerveja. Porém não havia ainda uma única gota de álcool no meu sangue: era só o começo do dia, uma manhã de outono em que o sol deixava o azul do céu vigoroso e o verde da mata atlântica ainda mais contrastante.
Distante 157 km de Florianópolis, Blumenau sedia, desde 1984, a Oktoberfest, o grande festival de cerveja originário da Alemanha. A edição brasileira é a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a de Munique. Mas foi só recentemente que a cidade catarinense recebeu o título de “Capital Nacional da Cerveja”.
A área também engloba cidades vizinhas do Vale do Rio Itajaí, onde famílias mantêm vivos os costumes de seus antepassados alemães. Blumenau é a meca da cerveja artesanal no Brasil, mas daí o leitor se pergunta: “O que cerveja e pedal têm a ver?”. Tudo! Claro, desde que você não vá encher a cara e pedalar em seguida. Fique tranquilo que você não corre esse risco, já que, no roteiro, as cervejarias geralmente são o destino final de cada dia.
Entre as dezenas de microcervejarias, 11 se uniram para criar o Vale da Cerveja, uma associação que agora procura fomentar na região o turismo motivado pela bebida preferida dos brasileiros. Em abril de 2017, a Caminhos do Sertão, uma agência especializada em cicloturismo sediada em Florianópolis, elaborou e inaugurou o primeiro roteiro de bike colocando alguns desses produtores ao longo do caminho. Durante três dias, você percorre 116 km, a maior parte por estradas de terra que serpenteiam as serras entre os municípios catarinenses de Ilhota, Gaspar, Pomerode e Blumenau – os pernoites são nesta última cidade.
É um pedal “equilibrado”, com boa dosagem entre trechos de planície margeando o rio Itajaí-Açu e subidas avantajadas, geralmente por entre pequenas propriedades rurais. O pedal também contempla trechos do Parque Nacional da Serra do Itajaí que, com seus 570 km², é a maior área de mata atlântica contínua de Santa Catarina.
O roteiro agrada ciclistas iniciantes e avançados. Um ciclista guia vai na frente, enquanto outro fecha o pelotão (formado por até 20 pessoas). Se você estiver com medo de não aguentar o tranco, não se preocupe: um carro de apoio e uma van (equipados com uma oficina móvel, comida e bebida, além de itens de primeiros socorros) acompanham o grupo durante todo o tempo. Nas subidas mais íngremes e extensas, há sempre a opção de subir no veículo para se poupar, aproveitando apenas as descidas e o vento no rosto.
Você pode ter achado o roteiro ameno demais, mas é aí que está a sacada desse pedal, capaz de dar aos “ciclistas de primeira viagem” uma boa noção de cicloturismo sem, no entanto, frear o rolê dos mais fortes. Não se trata simplesmente de um passeio para degustação de cerveja com a “desculpa” de pedalar para diminuir a culpa pelas calorias ingeridas. A ideia aqui é deixar para lá os problemas da rotina, brindar ao fim do dia com excelentes cervejas e celebrar os quilômetros acumulados.
Roteiro do Vale da Cerveja
DIA 1: Nada de moleza
O primeiro dia de pedal pelo Vale da Cerveja pode parecer moleza até a hora do almoço. Após um curto traslado de van da pousada em Blumenau – ou direto de Floripa, se você preferir –, a saída é no pequenino bairro Pedra de Amolar, no município de Ilhota. Rumo ao oeste, por 30 km bem tranquilos, todos vão se familiarizando com o veículo – mountain bikes modernas e devidamente revisadas. As estradas de terra em ótimo estado margeiam imensos arrozais e casas simples, porém bem cuidadas. Os cachorros olham para as bicicletas com desdém. Passam por nós pequenos bandos de canários-da-terra e quero-queros, além de duas corujas-buraqueiras que espreitam sobre as cercas.
Depois de uma breve ascensão, uma parada para o almoço em um bambuzal à beira de um rio. Uma farta mesa de frios e conservas da região são servidas. É sair dali para encarar o trecho mais duro do dia: uma ladeira contínua de quase 10 km, com duas quedas de nível, até atingir os 280 metros de altitude. Ao longo de 1h15 de subida, uns empurravam as bikes, enquanto outros embarcavam na van. Nos momentos mais agudos, também me deu vontade de descer e empurrar. Mas com a marcha leve, a respiração ritmada e um pouco de persistência, foi possível concluir os 620 metros de subida acumulada pedalando.
A recompensa: uma descida de 5 km, íngreme e emocionante. E já que para baixo todo santo ajuda, depois de 46 km, foi rápido até chegarmos ao bairro de Belchior Alto, em Gaspar. Fomos direto para a Das Bier, uma cervejaria que produz 12 rótulos diferentes – destaque para a cerveja do tipo Saison. Em seguida fizemos uma parada na pousada, seguida do jantar na Villa Germânica, localizada na mesma zona do pavilhão de exposições onde acontece a Oktoberfest. Não deixe de conhecer a Bier Vila, que tem a melhor carta de chopes de Blumenau, com 22 cervejas artesanais de barril e outras 400 em garrafas. Uma perdição.
DIA 2: Sempre dá para piorar
Ainda em Blumenau, logo de manhã participamos de um workshop de 1h30 na Escola Superior de Cerveja e Malte para entender melhor sobre a bebida símbolo desse pedal. A escola também oferece um curso técnico para credenciar mestres cervejeiros – uma boa opção para quem quer trabalhar em uma das mais de 430 cervejarias artesanais do país ou então abrir o próprio empreendimento. Sabendo mais sobre a bebida, seguimos de van a Pomerode.
A cidade mais germânica do Brasil é delicada, com placas escritas na língua germânica. Passamos pedalando em frente à cervejaria Schornstein, mas apenas contemplamos as pessoas bebendo do lado de fora. Foram mais 10 km de pedal até a parada para o almoço diante da inusitada casa do senhor Arno Kretz, de 70 anos, que construiu pela região 36 rodas d’água – um dispositivo antes muito utilizado para aproveitar a corrente de água na produção de energia elétrica. Dali em diante, há um ganho violento de altitude. Em apenas 4 km, saímos dos 130 metros e chegamos aos 300 metros. Uma suadeira em meio à mata densa.
As bikes avançam entre lindas casas construídas no tradicional estilo enxaimel e plantações de palmeira real (cultivadas para a extração de palmito). Depois de um longo trecho baixando, com duas subidas no meio, era hora de descer por completo, até atingir os 50 metros de altitude, no nível do rio Itajaí. Seguimos por uma grande reta e ficamos tentados a entrar na Bierland. Porém preferimos ir até a Cervejaria Container, no bairro de Itoupava.
Agora, sim, com visita à fábrica e direito à degustação. O estilão inglês da decoração, com autênticos toques de rock’n roll – há uma guitarra do AC/DC e um disco do Led Zeppelin autografados pendurados na parede –, quebra um pouco os ares alemães do Vale da Cerveja. A cerveja Joke foi eleita a melhor pilsen de toda a viagem. Quem estiver no pique pode ainda seguir de van até a fábrica da Cerveja Blumenau, uma das mais consolidadas da região, e provar a premiada Capivara Little Ipa direto da fonte.
DIA 3: Já acabou?
Bastam apenas alguns quilômetros em cima da magrela para ter certeza de que este é o mais bonito dos três dias de pedal. O dia começa no bairro de Nova Rússia, porta de entrada do Parque Nacional da Serra do Itajaí. Depois de 10 km de descida margeando o Ribeirão Garcia, a umidade da mata atlântica deixa o vento no rosto mais refrescante. Em alguns momentos de floresta fechada, uma garganta se forma e revela imensos despenhadeiros. Uma curva me fez lembrar a Estrada da Morte, na Bolívia, o famoso downhill de mountain bike que sai dos 4.650 metros de altitude e chega aos 1.200 metros. Aqui também é preciso atenção, e o prazer da descida não é menor.
Entre pequenas pontes e corredeiras cristalinas do Ribeirão Garcia, vamos entrando na cidade de Blumenau. A parada para o lanche foi em uma rua tranquila do bairro Progresso. Seguimos por mais 7 km, com bons trechos de ciclovia, até o centro de Blumenau. Em pleno domingo, a Rua 15 de Novembro estava fechada para os carros, porém cheia de famílias andando de bike.
Desconfiada, uma capivara se alimentava às margens do rio Itajaí-Açu, próximo à foz do afluente Ribeirão Garcia, que foi a nossa “bússola” ao longo do dia. Diante do Mausoléu Dr. Blumenau – o cara que fundou a cidade, em 1850 – funciona o singelo, porém coerente, Museu da Cerveja. Almoçamos em frente, no farto e tradicional restaurante alemão Thapyoka. Ali brindamos nossos três dias de pedal, claro, com muita cerveja boa.
Por Felipe Mortara | Fotos de Fernando Angeoletto
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