O treinador Gabriel Vargas mostra os passos mais importantes na preparação para encarar um desafio de grandes proporções
As ultramaratonas são eventos duríssimos, que cobrem grandes distâncias em vários dias sobre terrenos e obstáculos muito diversos. O número de provas desse tipo cresce no mundo inteiro, e no Brasil não é diferente: Iron Biker, Brasil Ride, Sertão Diamante, Pata de Onça, Canastra Ride (entre outras) são alguns dos exemplos já consolidados no território nacional.
Os atletas amadores precisam muito mais do que apenas um bom treinamento. É necessário distribuir esforços entre outros aspectos, como as despesas da participação, logística de viagem e acomodação, manutenção da bike entre as etapas, estrutura de apoio, equipamento, etc. Para um Brasil Ride, por exemplo, ainda será preciso encontrar uma boa parceria com outro atleta para fechar uma dupla – e estar em sintonia tanto em performance quanto em atitudes.
É um desafio tremendo, mas a linha de chegada da etapa final torna-se mais viável ao passo em que o planejamento e a preparação são executadas adequadamente. Para ajudar a quem está de olho em devorar etapas neste ano, seguem algumas dicas importantes.
Planejamento prévio
É crucial ter um planejamento completo do treinamento, incluindo uma periodização bem elaborada, que contemple também a preparação complementar (como a musculação, por exemplo), competições importantes e as provas preparatórias, testes, semanas de recuperação, etc. O procedimento padrão é pensar no calendário de trás para a frente, a partir da data da grande prova-alvo. Sabendo o que deve ser feito nas semanas anteriores, bem como nos meses que antecedem esse momento, é possível planejar para chegar no evento com o melhor condicionamento possível, reduzindo o risco de lesões e recuperação inadequada, um problema popularmente conhecido overtraining.
Mas o que isso significa, exatamente? Basicamente, é preciso articular volume, intensidade e o conteúdo específico dos treinos para garantir que o atleta esteja pronto para encarar todos os aspectos do desafio. Quem treinar muita intensidade e deixar a resistência de lado não terá o necessário para lidar com a duração da prova. Quem se dedicar totalmente à resistência não terá ritmo para completar as etapas no tempo previsto. Quem treinar demais ambos os aspectos, concomitantemente, corre o risco de ganhar o troféu “Leão de Treino” do ano – e possivelmente ir mal no momento mais importante.
O segredo é equilibrar esses fatores de forma segura e eficiente. Tradicionalmente, atletas dedicam-se à construção de uma grande base de resistência e começam a desenvolver a intensidade à medida em que se aproximam da prova-alvo, ao passo em que reduzem o volume para garantir que os níveis de fadiga estejam sob controle.
Uma maneira ainda mais simples de organizar uma periodização eficaz é seguir o roteiro: 6 a 2 meses antes da prova, siga um treinamento polarizado (confira aqui), em que os treinos de resistência (longos) são em ritmo leve a moderado – zona 2, enquanto os treinos mais curtos incluem muitos exercícios de alta intensidade, bem acima do ritmo de prova. Aproximadamente 8 semanas antes da prova, afunile os treinos para elevar o ritmo dos treinos de resistência (ficando cada vez mais próximos ao ritmo-alvo da prova) e vá gradativamente reduzindo e removendo os treinos de alta intensidade. Não se esqueça de reservar os últimos 7 a 10 dias para treinos mais leves, para garantir a recuperação adequada sem perder o condicionamento.
Metas para a preparação
Sabendo o tamanho do desafio, o atleta precisa estabelecer algumas metas dentro do próprio processo de preparação. Para uma prova como o Brasil Ride, com sete etapas totalizando aproximadamente 600 km, três marcos são fundamentais: Primeiro, o atleta precisa ser capaz de cobrir uma grande distância em um dia. Recomendo incluir alguns treinos especiais com 180 a 220 km no asfalto ou 7 a 8 horas em movimento na mountain bike. Esses treinos o ajudarão a desenvolver não apenas a resistência, mas também estratégias de economia.
Segundo, é preciso incluir alguns blocos com vários dias de treino seguidos. Esses blocos precisam ser introduzidos de forma gradual e crescente – comece com blocos de quatro dias intercalando treinos de algumas horas com treinos de recuperação ativa, depois passe para blocos de cinco a seis dias intercalando dois dias de treinos longos com um mais curto e leve.
E por fim, como um terceiro marco, realize um bloco de treinamento que simule a prova, com seis ou sete dias de treinos mais longos, incluindo alguns realmente longos. Mas atenção: lembre-se que você está se preparando, testando e experimentando, e não se colocando à prova de fato. É preciso ser cuidadoso e estar atento aos sinais do seu corpo. Se você extrapolar os limites durante a preparação, poderá chegar na prova cansado, mau-preparado, ou pior, lesionado.
Trabalho em dupla
Se você vai correr em dupla, treine com o parceiro não só nos longões, mas procure também realizar lado a lado alguns dos treinos de intensidade, testes, e claro, corram juntos algumas provas preparatórias se possível. Vocês precisarão desenvolver boa comunicação, compreensão, paciência e uma sensibilidade para sobreviverem aos percalços mais desgastantes sem perder a amizade. Dificilmente as habilidades e as capacidades são 100% iguais.
Um sempre é mais técnico nas descidas, ou mais explosivo ou resistente; podem ter ritmos gerais parecidos, mas um sobressai nas subidas e o outro domina os planos e estradões. Um pode ser mais centrado, capaz de orientar melhor o ritmo, outro é mais afobado e pode exagerar se não tomar cuidado. Ambos precisam estar cientes das diferenças, dos pontos fortes e fracos e estarem dispostos a abrir mão de vaidades pessoais para atingir o objetivo maior da dupla na prova.
Contemple todas as habilidades, capacidades e possibilidades
Em uma prova longa e com percurso variado, muita coisa pode acontecer. É preciso estar preparado para todos os terrenos, climas, ritmos e até mesmo situações. Por isso o ideal é que o mountain biker acumule experiência sobre uma ampla gama de condições. Treinos específicos e provas de XCO serão úteis. Ritmo forte e sustentado em estradões planos, ou subidas intermináveis em serras íngremes, terrenos com raízes, com areia, cascalho solto, lama… Sol extremo, chuva forte, vento. Enfim, não fuja de condições adversas em seu treinamento. É melhor que você aprenda a lidar com as dificuldades enquanto você pode errar (e portanto, aprender com os erros) do que no momento crucial.
Treine também níveis de esforço variados. Os treinos longos geralmente terão ritmo leve a moderado, mas inclua esforços nos níveis neuro-muscular (sprints de poucos segundos), de capacidade anaeróbia (aproximadamente um minuto), no VO2 máximo (tiros máximos de cerca de 5 minutos) e, claro, no limiar funcional (trechos de 15 a 20 minutos no limiar anaeróbio). Procure desenvolver boa cadência, mas não se esqueça de trabalhar bastante força em cadência baixa, algo vital no mountain bike.
Estabeleça parâmetros
Um dos maiores riscos de um atleta iniciante em provas desse tipo é exagerar no ritmo nas primeiras etapas. Enquanto os grandes nomes, muito fortes e experientes, estão dosando o ritmo, o iniciante desavisado empolga e tenta acompanhar os ídolos. Resultado: não conseguirá ir muito longe logo no segundo ou terceiro dia.
Todo o processo de treinamento é fundamental para que o atleta estabeleça seus limites de segurança, ou seja, qual o ritmo ou nível de esforço que ele sabe que poderá sustentar por toda a duração do evento. Em uma prova extrema e de muitas nuances como um Brasil Ride, a percepção do esforço pode ser falha, e até mesmo a frequência cardíaca irá se apresentar de maneira muito pouco fiável ao longo das etapas – por causa da fadiga, temperatura, desidratação.
Aqui, realmente recomendo investir em um medidor de potência. Ele transformará toda a preparação e a estratégia de prova em uma ciência muito mais exata. Com ele, o atleta terá parâmetros exatos para controlar o ritmo dentro de uma etapa, e também a carga geral a qual ele estará sendo submetido dia após dia.
Treinamento é fundamental para estabelecer seus limites de segurança Foto: Cape Epic/Ewald Sadie
Pense em cada detalhe
Outro aspecto fundamental na preparação é trazer para o treinamento exatamente, ou o máximo possível, daquilo que o atleta irá encontrar e lidar na prova. Para a maioria – inclusive os profissionais – é inviável viajar ao local da prova para um reconhecimento prévio. Mas o equipamento, vestuário, acessórios, nutrição e hidratação, tudo isso precisa ser testado antes.
Existe um enorme risco com qualquer mudança logo antes da largada. Há casos de quem tenha comprado uma sapatilha nova na véspera e sofrido com pés machucados, ou um novo selim – descobrindo no pior momento possível que sua anatomia não casou bem com a peça nova. O perigo mora nos menores detalhes: um dos meus atletas perdeu todos os cartuchos de CO2 que trazia consigo (e muito tempo, claro) em uma das etapas do Brasil Ride por não saber operar a válvula do inflador que ele comprou na vila, por ter esquecido o seu em casa.
Conclusões
Preparar-se para uma ultramaratona ou uma prova por etapas de mountain bike está muito além da preparação para uma prova “convencional”. Não só atleta precisa ter resistência e bom ritmo, mas também é preciso desenvolver a capacidade e as estratégias corretas para uma boa recuperação entre as etapas e ter os recursos necessários para poder dosar bem o esforço.
As dicas que apresentei no texto são apenas uma visão geral e um tanto quanto simplificada do que realmente é preciso no treinamento. Se o seu projeto é fazer parte de um desafio dessas proporções, recomendo informar-se ao máximo sobre todos os aspectos envolvidos na preparação e, claro, procurar o acompanhamento de um profissional da área.
Gabriel Vargas – Treinamento em ciclismo
www.gabrielvargas.com.br
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